Augusto

AUGUSTO

por Leonardo de Castro


          Dúvidas críticas e/ou seugestões enviar para:  leonardo-_-augusto@hotmail.com

    Olá, jovens mentes ávidas pelos conteúdos vastos da internet. Venho através desta página falar-lhes com muita descrição algo que me veio a ocorrer tarde da noite, não sei que horas, mas também isso não importa. A hora é só um artifício do homem para se prender de alguma forma e não se dar conta disso, afinal, fomos nós que inventamos o tempo, certo? Agora mesmo são 01:25hs e eu ainda nem comecei, mas por hoje já pretendo parar. A noite é companheira daqueles que a entendem e fazem dela fonte de inspiração, mas nem todos os pais sabem disso.
          De qualquer modo o homem é inventor de sua própria destruição. O planeta que o diga!
          
          Augusto é um nome, vocês devem saber. Grandes homens nasceram e fizeram proeza com este nome: 
Otávio Augusto - herdeiro adotivo de Júlio César  
Otávio Augusto Dias Carneiro - diplomata e político brasileiro
Otávio Augusto Teixeira Mendes - engenheiro agrônomo e arquiteto paisagista
Otávio Augusto de Azevedo Sousa - ator brasileiro 
Augusto Campos é administrador, especialista em gerenciamento de projetos e em implantação de software livre, e autor do BR-Linux e do Efetividade.net.  (não me perguntem oque significa, por favor)
Dr. Augusto Cury - psiquiatra e investigador brasileiro
Augusto Rennó - guitarrista de jazz de São Paulo
 Leonardo Augusto - músico da Orquestra de Violões de Campo Grande
etc Augusto etc

         Viu? Tem muito cara importante que eu também nunca ouvi falar com Augusto no nome! O título se deu simplesmente porque gosto desse nome. É muito significativo e vocês vão ver que ele tem tudo a ver com a história que aqui será escrita aos poucos. Mas sem mais delongas, partimos para o que interessa. O que motiva a escrita até aqui e, espero, a leitura também. Por favor, não pensem que eu estou enrolando, todas as informações aqui previamente passadas são muito importantes para o entendimento da história, tirando os nomes que estão lá só pra enfeitar e dar mais glória ao título.
         Então tá! Sem mais blá blá blá, senhoras e senhores, bem-vindos a magia da cabeça humana!


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AUGUSTO

    Tudo escuro. Acabo de me deitar, o som do ventilador me traz calma depois do dia corrido. Agora que descanso tudo é paz e serenidade. É na cama que passo os bons tempos de calmaria, longe dos problemas cotidianos, longe do barulho e da algazarra diurna.
    Finalmente acabei a introdução. O sono me consome e já não sou mais eu quem toma conta de minha mente, apenas de meu corpo, mas mesmo assim, me desculpem, penso chegar agora ao meu limite. À noite me cobre com seu manto...

    ...,

    Pego o mesmo ônibus quase todos os dias. O 130 já faz parte da minha vida. Isso me faz lembrar uma frase: "no ônibus tudo pode acontecer", não sei onde eu ouvi ou li isso, só sei que sei. Só não entendo como é que em um ônibus lotado e fedido tudo pode acontecer. A coisa mais excitante que pode acontecer é a gente bater, virar, sei lá... Só que comigo na lista dos sobreviventes, é claro. Nunca fui muito chegado da morte.
    - Droga. Preciso vender essas rifas! - disse comigo mesmo - Tinha me esquecido completamente delas, agora que apalpei meu bolso que lembrei. Tudo bem, todo mundo gosta de rifa, ainda mais uma que vem com um charuto explosivo de brinde. Todo mundo gosta de brinde. Até mesmo se for explosivo. Vai ser fácil!
   Levantei, respirei para tomar coragem e olhei a todos que já me viam com a certeza de que eu ia fazer alguma coisa.
   - Bom dia a todos! Desculpem atrapalhar a paz de vocês dentro do ônibus, mas eu gostaria de compartilhar uma valiosa informação! Estou vendendo uma rifa maravilhosa, de apenas cinco reais! Vem com um lindo charuto explosivo e vocês concorrem aos mais variados prêmios. Alguém se interessa?
   - Não! - todos disseram em uníssono.
   Não é possível! Mais de trinta cidadãos brasileiros e nenhum pra me ajudar com cinco reais!? Esse mundo tá perdido mesmo! Vender rifas pra povo trabalhador é mais difícil que ganhar na loteria, é a única certeza que tenho, além da morte, é óbvio.
   - Aqui que desço moço.
   - Boa sorte com a rifa rapaz. - disse o cobrador sorrindo.
   - Obrigado.
   "Educação é tudo", minha mãe sempre dizia e, realmente, o cobrador me fez por um momento esquecer meus problemas. Fazer o quê? Cada pessoa cria seus próprios problemas. Não sei o que estava pensando quando resolvi ajudar na festa do colégio vendendo rifa. Falando nisso, aquele senhor no ponto de ônibus me parece disposto a comprar uma rifa! Ele tem cara de ser um sujeito amigável e pronto a ajudar o próximo como puder!
    - Bom dia! O senhor não estaria interessado em comprar uma rifa? Custa apenas cinco reais e ainda vem com um lindo charuto explosivo!
    - Cinco reais? Parece-me interessante. Como funciona esse tal charuto?
    - O senhor só tem de colocá-lo na boca e acendê-lo. Assim que o senhor o fizer, ele explodirá! Deixe-me mostrar para o senhor.
    Peguei uma de minhas cartelas e abri um dos charutos na frente do homem, tirei um isqueiro de meu bolso e, assim que o acendi, não cheguei a dar duas tragadas para que o charuto explodisse em uma cortina de pó no meu rosto.
    Normalmente eu não faria essa demonstração assim, só para vender uma rifa, mas alguma coisa naquele homem me fez esquecer algumas regras que a sociedade exige de uma pessoa normal. Comportei-me como louco diante do velho só para vender uma rifa que nem era tão importante assim. É... parecia que eu estava mais do que decidido a vendê-la.
    Com o rosto sujo do pó, já preparava a carteira, para receber os reais que, com certeza, havia conquistado. Mas fui pego de surpresa.
    - Garoto, eu não gosto de brincadeirinhas de mau gosto. Não me amole com tolices! - disse o velho, enquanto saía rua a fora.
    Achei-me no mais complexo vazio. Nada saía como desejava. Jurei por todos os santos que daquele senhor eu tiraria os benditos cinco reais. Sua fisionomia alegre transformou-se quase que por mágica, sua face que transmitia tranquilidade ardia em um gesto bruto de exclusão às minhas tentativas vãs de fazê-lo comprar um dos números. Mas algo a mais me intrigava. Por que ele mudara assim, de repente? Será que fui eu o causador disto? Alguma coisa que disse ou que fiz? Em minha cabeça não é errado querer demonstrar o melhor de mim para qualquer que fosse meu receptor.
    - Hei! Espere, por favor!
    O homem havia tomado rumo enquanto eu divagava em minhas questões sem resposta. Me dei conta disso somente algum tempo depois, quando notei que ele já estava longe. Saí correndo atrás dele, disposto como nunca, mas mais uma vez ele me jogaria contra a parede.
    - Me desculpe, mas o senhor não ia comprar uma de minhas rifas? - perguntei esperançoso.
    - Falou certo, ia, não vou mais.
    - Mas por quê? O que eu fiz de errado? O senhor me fez jurar que ia te vender um...
    - Olha, vocês jovens são muito ingênuos, vocês acham que é só chegar com um sorriso no rosto para qualquer um e pronto, já resolvem seus problemas. Vocês são muito chatos, aliás, vocês não, você! Rapaz, deixa eu te aconselhar uma coisa que vai te ajudar muito. Olha, nem tudo o que parece é! - disse o velho antes de me dar as costas.
    Assim que ele terminou de me dar o sermão, entrou em um enorme portão de ferro, rústico, com pequenos detalhes de cobre. Por trás deste que se estendia até onde a vista alcançava, vi o que me pareceu uma enorme mansão daquelas dos filmes do Drácula. Parei diante daquele assustador monumento e comecei a pensar comigo mesmo. Sei que tudo o que aquele senhor disse é verdade, principalmente que "nem tudo que parece é". Isso se pode notar tendo ele como principal exemplo, mas o porquê dele mudar o humor tão radicalmente ainda me intrigava. Algo de muito errado estava acontecendo com aquele homem. Sei que posso ajudá-lo quanto a isso, seja o que for. Então preciso me ajudar para tentar ajudar os outros. Nada melhor do que eu me encontrar primeiro. Mas, falando nisso...
    - Aonde é que eu tô?
    Agora que me dei conta. Enquanto conversávamos, fomos andando por entre um bosque que eu nunca tinha visto antes, e que por final dava na casa do velho. O fato é que eu estava perdido. Como não sabia como voltar, achei melhor me arriscar e perguntar a alguém, no caso, ao velho. Seja o que Deus quiser.
     Para minha sorte o portão estava destrancado. Só precisei fazer um pouco de força para empurrá-lo, já que se encontrava em um deplorável estado de ferrugem, o que dificultava ainda mais para mover. Ao fazê-lo, ouviu-se por todo o bosque um terrível som que assustava até a mais frígida alma humana. O som produzido foi tão aterrorizante que parecia que o próprio portão gritara de dor após ser movido. Me fez gelar a espinha. Tornou-se mais estranho quando notei que quando o velho entrou nada aconteceu, nenhum barulho infestou o ambiente sereno do bosque. O portão abriu-se como se abre uma folha de papel dobrada, e mais ainda, a aparência antes dele entrar era a de um portão conservado e bem tratado, como se houvesse alguma mucama para encerá-lo todos os dias, mas que mudara radicalmente assim que o velho fechara o portão na minha cara.
    Definitivamente alguma coisa de muito estranho estava acontecendo. Eu sei que até agora, devo ter repetido essa frase umas cinquentas vezes para mim mesmo. Peço desculpas, mas sabe, alguma coisa de muito estranho estava acontecendo ali.
    Entrei pelo temeroso portão e, logo depois, fui bater à porta da mansão, sem nenhuma resposta. Estava começando a desistir dessa idéia desastrosa, mas vi um vulto negro e grande que correu até o fundo da casa. Segui-o. O fundo era ainda maior que a frente do casarão. Havia ainda três portas, sendo que uma dava ao bosque novamente, outra a uma pequena casa, o que, pela aparência, parecia ser um armazém e a outra mais uma entrada da mansão. O vulto desaparecera. Devia entrar logo em alguma das três portas. Rezei por um momento pela minha vida, não sei por que, mas me dava medo tudo aquilo que estava acontecendo. O lugar era coberto por um fino manto de névoa que dava ao cenário um ar aterrorizante, o que piorava ainda mais a situação. Minhas pernas tremiam como nunca. Senti que não estava sozinho. Acho que estava em perig.....
    
    ...
TRANSPONDO


    - Ai, minha cabeça! - gemi ao sentir uma dor aguda - Onde estou? Meus olhos... não posso enxergar... onde estou?
    Acostumado com a forte luz que me encobria, pude abrir meus olhos com dificuldade. Minha íris ardia como se estivesse sobre fogo, mas logo meu corpo restabeleceu sua força e eu podia me levantar. Além dos olhos doía também minha cabeça, resultado de uma pancada, concluí, que me fez desmaiar. Fato este que descobri ao sentir o sangue já coagulado e a ferida que estava em minha cabeça.
    O lugar parecia ser uma sala de manicômio, tão branca quanto um floco de neve. Mas como eu havia chegado lá? Por que isso agora? Droga, eu só queria vender rifas. A sala me inspirava um acesso de loucura:
    - Meu Deus! Onde estou? Como vim parar aqui nessa porcaria de lugar? Será que tem alguém me ouvindo? Socorro! Deus, por quê? Velho desgraçado, aposto que foi ele quem me prendeu aqui... Apareça velho! Vem que eu acabo com você! Ahhh!! Aparece!!
    Já não era mais eu dono de mim, mas meu corpo cansado, tentando achar alguma saída para tudo aquilo, persistia no desespero. Agora sim aquela sala fazia jus a seu usuário. A única coisa que conseguia entender naquele momento era a raiva que estava sentindo e que alguém, quem quer que fosse, pagaria muito caro por isso.
    - Acalme-se criança. - disse uma voz calma e serena, que vinha não sei de onde - Sei que está assustado, mas tudo se resolverá, acredite em mim, não precisa de tanto medo. Há tanta raiva que vejo tomar conta de seu coração e mente. Depois da tempestade sempre vem a calmaria, não tenha medo do que verá aqui, esse pesadelo passará rápido, só precisamos de um tempo de seu horror...
    - Mas como assim? Quem é você?
    Silêncio, apenas o silêncio me fazia companhia e me acalentava. Por um curto período de incontáveis minutos, apenas eu e o silêncio. Brincávamos com minha cabeça cansada e confusa, que, por mais que tentasse, não conseguia pensar em algum modo de me livrar daquela situação. Mas como havia dito antes, ficamos sós por pouco tempo.
     Através da janela da porta de saída vi um grande salão com várias outras portas que, provavelmente, dariam em lugares como o que eu estava. Do teto ao chão escorriam manchas escuras e avermelhadas. Provavelmente sangue, pensei. O salão era todo feito de ferro enferrujado, o que aumentava ainda mais seu ar grotesco. Havia ainda, espalhadas pelas paredes, algumas estacas que continham tecidos com um volume que não pude distinguir de longe. Provavelmente carne, pensei. E ao pensar, o sangue gelou mais uma vez, as pernas tremeram novamente com as possibilidades, no mínimo dolorosas, que imaginei. Talvez a carne que estava presa às estacas fosse carne humana de algum coitado que esteve no mesmo lugar onde eu estava.
    Deus, eu só podia estar em uma câmara de tortura, ou alguma coisa assim, apenas esperando para a minha vez de ser estripado, de ver meus órgãos internos deixarem de ser internos...!
    Ouvi um rangido. Corri para a portinhola, para a janela da porta de meu quarto e vi uma das portas abrindo. Entrou no salão um homem de olhar fixo e sério, de fisionomia metódica, de andar rígido, mas que mancava de uma perna, tinha cabelos negros e barba bem feita, de uns trinta a quarenta anos, não sabia dizer. Seu rosto transmitia respeito, mas certo medo e, pelos trajes, era militar, um general de grande patente a julgar pelas condecorações que exibia em seu ombro esquerdo.
    Seguiam-no dois homens bem maiores que ele, grandes até demais. Eram maltrapilhos, brutamontes e não possuíam um único fio de cabelo ao longo do corpo. Nada amigáveis, posso dizer. Poderiam ser serviçais do general, mas a julgar pelo tamanho e pelo olhar morto poderiam servir de capangas perfeitamente. Um deles não tinha a mão esquerda enquanto que o outro perdera a orelha do mesmo lado. Capangas, com certeza eram capangas e pelo jeito, seus serviços eram bem pesados.
    Uma cena bem familiar dos filmes de gangues. O senhor, aquele que manda e que pensa por todos e seus jagunços. Os trogloditas eram verdadeiras aberrações enquanto que o general era justamente o contrário. Ele transmitia confiança, era o líder, o cabeça-mandante, ele emanava confiança. Foi aí que me lembrei.


NEM TUDO QUE PARECE É


    Com um gesto, o general ordenou a seus homens que abrissem uma das portas do frígido salão. Entraram os três. Depois de um tempo ouvi gritos sufocados e agonizantes de um homem que precederam um silêncio tão agonizante quanto os gritos de agora pouco. Saíram, sendo que um dos capangas estava com uma trouxa por debaixo do braço. O general começou então a revistar toda a roupa com certo asgo no rosto e, assim que examinava cada peça, jogava-a ao chão com força. Terminado, falou alguma coisa com seus homens, inaudível para mim. Eles mais que imediatamente se viraram para a minha cela e me fitaram direto nos olhos. Com o susto caí e logo me recolhi em um canto, esperançoso de que eles não tivessem me visto, ou ainda melhor, que não viessem ao meu encontro.
     Ouvi passos. Ouvi um molho de chaves saindo do bolso de alguém. Ouvi a chave penetrando a fechadura. Ouvi o girar que destrancou meu pânico silencioso.
    Entraram. O general ficou olhando para mim durante um minuto e durante um minuto eu fui espancado pelos trogloditas até que um deles me levantou com uma só mão pelo pescoço e me atirou como se eu fosse um boneco velho. Caí desacordado.

    ...

    Ao despertar ainda estava em meu cativeiro branco. Tinham tirado todos os meus trajes e raspado todo o pêlo de meu corpo, menos os de minha cabeça, nela só haviam cortado as pontas das mechas que eu costumava usar. Minha cabeça ardia como brasa.
    Talvez eu ainda não tivesse acordado para aquela realidade, talvez eu já estivesse morto, ou pelo menos seria melhor estar, apesar de que eu nunca quis morrer sozinho e, ali, agora, era só o que eu sentia: solidão. Aliás, este é um de meus medos, morrer sozinho, morrer no desespero dentro da escuridão gélida de algum beco enquanto um filme dos bons momentos da vida passa pela cabeça. Este é um final que ninguém merece. Talvez fosse um modo que Deus encontrou de fazer sofrer os demônios que encarnam em forma de gente. Para alguns a morte é a solução de muitos problemas, mas para mim, a morte é um problema, e dos grandes. Existem milhares de jeitos de morrer, nenhum deles me agrada, nem dormindo, que é o que a maioria deseja. Para mim é babaquice, ninguém deve escolher sua forma de morrer, apenas tentar morrer melhor.
    Do que eu estou falando? Existem coisas melhores para me preocupar agora.
    Após me recompor ouvi de novo a tranca. O general me encarou da janela e depois abriu a porta. Seus brutamontes, assim que puderam, avançaram sobre mim e começaram mais uma sessão de massagem. Caí mais uma vez, mas meu corpo já estava acostumado com os golpes. Quanto mais eu apanhava, mais minha raiva aumentava, mais eu tinha vontade de revidar toda a surra. Só que o corpo não conseguia acompanhar a vontade. Eu sangrava lentamente, jogado aos pés sujos de meus torturadores, até que o general ordenou que parassem.
    O militar abaixou-se, pôs sua cabeça bem próxima da minha. Seus olhos eram cansados e não tinham vida alguma, eram tão negros quanto o abismo que eu me metera. Depois de examinar meu rosto o dele mudou. Sua expressão era de nojo, repúdio à minha carcaça. Tinha os olhos fixos enquanto os levava pelo caminho que meu sangue fazia ao escorria sobre meu rosto. Passou o dedo nu no sangue de dentro da minha boca e a abriu, sempre examinando. Sentiu a textura do líquido vermelho e viscoso friccionando os dedos, levantou o canto esquerdo dos lábios, revelando os dentes e o desprezo. Limpou as mãos na calça bem passada. Seu olhar me humilhava. Só o modo com que me olhava já me deixava fraco, desanimado em continuar lutando para sobreviver a tudo. Vi no fundo de seus negros olhos almas vagando sem rumo em um mundo sem vida, sem sonhos. Senti todo o ódio de alguém que nada conhece da vida além da dor que ela pode proporcionar, vi no fundo de seus negros olhos a morte da esperança. Vi-me fazendo parte de tudo isso, perdendo-me junto com todos aqueles. Dentro do fundo de seus negros olhos senti minha carne se desfazer em pedaços, lentamente, sem pressa de ser devorada pelo escuro. Senti minha alma enfraquecendo, preguiçosa, levemente umidecida em uma essência pegajosa e viscosa que me encobria, que fazia parte de todo o firmamento dos negros olhos. Senti que, naquele momento, morreria sozinho. 
    Ele tirou uma faca de serra de dentro do cano longo de sua bota e começou a conduzi-la por sobre meu rosto. Chegando a meus lábios subiu a lâmina suavemente até pairar bem rente a meu olho esquerdo. Eu permanecia imóvel, meu corpo estava exausto com tamanha tortura. Eu jurei não poder mais sangrar do que aquilo, jurei não ter mais como sofrer, como sentir mais medo do que já havia sentido, mas me vi terrivelmente enganado. A lâmina perfurou ainda mais fundo em minha carne, retirando uma boa quantia de sangue do meu rosto. Desenhou uma linha reta desde logo acima de meu olho até o começo da bochecha. Sua faca me queimava ao mesmo tempo em que cortava. Gotas de fogo cor de sangue caíam solitárias e incessantes sobre o chão frio.
    O general levantou-se, havia terminado sua sessão de desprezo. Seus homens jogaram minhas roupas sobre mim e ordenaram-me que as vestisse. Assim que saíram, obedeci.   
    Depois de mais umas três horas de angústia, já não conseguia entender o porquê de eu ainda estar vivo. Havia perdido muito sangue, meu corpo estava fraco e eu começava a alucinar. Sentia-me como um pedaço de carne que nada mais espera de sua existência além de ser levado para o corte. Acho que é assim que as vacas se sentem. Foi então que, por mais uma vez, o barulhinho do trinco me alertou.
    Com a curiosidade superando a fadiga, levantei-me e fui ao encontro da janela de minha prisão branca. Vi o general seguido de seus homens entrarem naquela primeira sala, citada anteriormente. Saíram de lá com um homem sendo arrastado pelos cabelos. Ele estava muito fraco, não conseguia mover-se direito. Assim como fizeram a mim, rasparam todos os pêlos de seu corpo, surraram e o sangraram apenas o suficiente para não matá-lo. Seu rosto estava desfigurado.
    Levaram-no ao centro da sala e o sentaram na cadeira de madeira. Enquanto os dois brutamontes seguravam firmemente o moribundo, o general dirigiu-se a uma porta de ferro um pouco maior do que as outras que, até aquele instante, não havia sido aberta. Ele entrou cautelosamente, sempre em silêncio. Do ângulo que estava não pude ver seu interior, mas notei que, assim como a porta, era diferente dos outros cômodos do salão. Nada podia fazer agora. Apenas esperei para ver o que aconteceria.  


BELIEL


    O que saiu lá de dentro era um monte de carne negra coberta por uma gosma densa. Tinha o corpo grotesco e comprido, seus movimentos eram bem lentos e aparentemente não tinha olhos, mas de onde eu estava não consegui enxergar nada que me lembrasse isso. Tinha bem no meio de suas costas, uma fenda da qual brotavam enormes estacas alvinegras, dentes afiados cobertos por uma baba pegajosa e oleosa. O que parecia ser a cabeça era uma ponta coberta da pele do animal até um pequeno buraco em sua extremidade besuntada de uma gosma preta, reluzente, fria. Não tinha patas nem nada que pudesse ajudá-lo a se mover, apenas um corpo grande, extenso e viscoso. Ao arrastar-se pelo chão imundo, aquela coisa balançava-se constantemente em movimentos peristálticos, mas sempre mantinha a ponta, sua extremidade posterior, sua cabeça, estática. Tudo naquela criatura me fazia querer morrer.
    O demônio aproximou-se lentamente do pobre coitado, com seu rastejar malicioso e assustador em cada milímetro. Assim que estava a menos de um metro do homem, parou bruscamente, o que fez balançar toda sua pele oleosa. O general ordenou que levantassem a cabeça do pobre que, ao recobrar os sentidos e ver o que estava em sua frente, abriu os olhos em desespero e gritou como se sua vida dependesse disso. O monstro assustou-se com o terror de sua vítima e afastou-se grosseiramente. Provavelmente gostava de comer em silêncio. Para acabar com as lamúrias, o general teve de quietar o moribundo acertando-lhe uma coronhada na cabeça. Passado o susto, o monstro aproximou-se e posicionou-se novamente. Estava se preparando para receber o alimento.
    A fenda que ele tinha no meio do corpo começou a se abrir. De dentro dela saiu o que parecia ser uma perna, um pedaço grande de alguma coisa que se estendia por pelo menos um metro e meio e que, assim que terminou de sair, desdobrou-se em mais um metro. Assim como uma perna de aranha, era coberta de pêlos grossos, mas possuía apenas duas articulações. No final daquilo que tinha saído de dentro do monstro havia um pequeno buraco. De dentro dele saiu um espinho, rígido e comprido, tão grande e tão faminto de sangue quanto às estacas que encobriam algumas partes da parede do salão. Vi a morte pingando da ponta finíssima.
    O demônio começou a balançar suavemente sua estaca como se a fizesse dançar por sobre a cabeça do pobre coitado. Tive a impressão de ver um sorriso balançar todo o corpo negro do monstro, de sentir a diversão dele ao brincar antes de devorar, de vê-lo satisfeito naqueles momentos, naqueles segundos que precediam a inevitável morte.
    Em um movimento ríspido o monstro levantou o espinho e o deixou firme, rente ao cume da cabeça. Em outro, desta vez rápido e imprevisível, abaixou-o perfurando o peito do homem. Da vítima ouve-se apenas um gemido quase inaudível que ecoou pelo salão e foi parar em um infinito quieto e desesperador. Com a estaca dentro do corpo do morto, o demônio começou a sugar. Consegui ouvir, para meu penar, o som que os órgãos faziam ao serem contraídos e sugados. Ouvi o bater rítmico do coração silenciar-se para perder-se como alimento da besta. Nada foi poupado ou desperdiçado, nenhuma gota de sangue manchou ainda mais o chão, tudo virou comida.
    Assim que terminou, o monstro retirou seu espinho de dentro de sua presa oca. O general aproximou-se do mascote sanguinário, o acariciou e encostou seu ouvido nele. Depois de alguns segundos escutando a respiração do monstro enquanto este digeria, o general revelou um sorriso malicioso que me fez gelar a alma. Virou seus olhos para mim, abriu ainda mais o sorriso. Apontou. Os dois capangas logo entenderam e vieram na minha direção, abriram a porta que me separava do demônio que estava logo ali do lado, e aproximaram-se de minha carcaça. Tentei resistir ao máximo com socos, chutes, pontas-pé. Debati-me desesperadamente enquanto eles me arrastavam como se eu fosse um pedaço de pano. Levantaram-me e me sentaram na cadeira, o monstro queria comer mais. Este mais uma vez abriu suas costas, tirou seu espinho e o fez dançar, mas desta vez era sobre a minha cabeça.

    ...respira...

    Isso não podia estar acontecendo, eu não podia morrer assim, eu tinha de resistir, eu tinha que fazer alguma coisa. Deus... ainda não é minha hora de morrer, eu sou muito jovem... não podia... não desse jeito... não agora... não desse jeito... não agora... não dess...
    - Não desse jeito!!! – gritei firme, como que em um último pedido aos céus, como um último suspiro que eu tive de soltar, como um modo para encontrar forças para suportar, para não morrer.
    O espinho parou sobre minha cabeça e levantou-se para dar o bote, assim como tinha feito com sua última vítima. Eu tinha que ser rápido, senão morreria. 
    Cinco segundos. Duraram apenas cinco segundos.
    Agarrei o braço do guarda que me segurava e puxei-o com toda a força que eu ainda possuía fazendo assim o espinho perfurá-lo ao invés de meu peito. Depois de me defender do golpe do demônio dei um soco rápido no nariz do outro brutamonte, o que o fez me soltar. Assustado por ter errado o alvo, e pelo grito do capanga, o monstro afastou-se bruscamente assim como tinha feito ao se assustar da última vez, com isso, acabou jogando um dos capangas contra umas das estacas que enfeitavam o salão com tanta força, que ele acabou morrendo, ali, dependurado. Assim que levantei da cadeira eu um surto desesperado para me salvar caí novamente, segurado pelo calcanhar pelo guarda que gemia no chão ainda sentindo a dor do braço perfurado. Chutei-o no rosto inúmeras vezes para que ele pudesse me soltar. Levantei-me novamente para poder correr. Por susto, desespero ou simplesmente para ver todo o inferno que havia se armado de toda aquela confusão, olhei para trás. O demônio, em uma fúria devastadora, atacando o guarda que estava entre nós perfurou-lhe o coração e o fez dançar pelo ar levantando-o com uma facilidade absurda. O corpo sem vida de um homem de mais de dois metros de puro músculo ia e voltava pelo ar como um brinquedo. A quantidade de sangue que jorrava pelo buraco era enorme e, com o balançar, o líquido vermelho espalhava-se por todo o salão. O monstro, ao invés de lançar o corpo às estacas, aproveitando que este estava atravessado por seu espinho, levou-o até sua boca e começou a mastigá-lo.
    Eu precisava sair daquele lugar. Abri a porta por onde o general havia entrado. Atrás dela encontrei um grande corredor que se estendia até onde a vista alcançava. Não tinha muito tempo para me preocupar com distâncias. Sem pensar duas vezes, corri desesperado, como se minha vida dependesse de minhas pernas. Desnecessário dizer, mas certamente era este o caso.
    Finalmente chegando ao fim do imenso corredor, encontrei mais uma porta. Era feita do mais puro ouro, tinha detalhes cravados em rubi e uma maçaneta feita de bronze enfeitada com linhas desenhadas em platina. O que a porta tinha em grandeza e abundância para os olhos, o que tinha de beleza, de preciosidade, tinha também de peso. Tive de jogar toda a força de meu corpo sobre a porta, fazendo assim, um esforço imenso que jamais imaginei possuir. Depois de abrir a porta, fechei-a novamente. Foi trabalhoso, mas certamente este seria um grande obstáculo para o general.
    Virei-me novamente para continuar correndo, já que esta era a única coisa que eu podia fazer até então, só que, em vez de correr, caí.
    Caí em um campo coberto de corpos humanos sem vida que parecia nem ao menos ter horizonte devido a seu tamanho. O imensurável cemitério fedia muito. Talvez fosse esse o cheiro da morte já que a única coisa que se via, até onde consegui ver, era um chão de mortos. Corpos ainda novos, em estado de putrefação, muitos já carcomidos pelo tempo, mas enfim, corpos. Todos com um buraco no peito, provavelmente abertos pelo demônio que agora a pouco enfrentei. O ar era corrosivo devido aos intermináveis anos de exposição das vítimas. Se eu não estava no inferno, então realmente não sabia aonde me encontrava.
    Recompus-me da tontura causada tanto pelo choque da cena quanto pelo cheiro que me invadia os pulmões. Esqueci que andava sobre gente morta e continuei a seguir. Com um pouco de dificuldade arrastei-me nos primeiros instantes, depois levantei um pouco, andando de joelhos, pus-me em pé e senti que o chão, apesar de ser o que era, tinha firmeza.
    Só Deus sabe quantas pessoas haviam sido assassinadas e jogadas lá... Não. Na verdade... acho que Deus desconhece a existência desse lugar.
    Comecei a correr. Um pouco desequilibrado, muito assustado, mas sempre determinado a não ser comido por ninguém.
    Não cheguei a percorrer trinta metros vi a porta pela qual havia acabado de passar voando sobre minha cabeça. Com o susto, me joguei no chão, mas ela passou longe de conseguir me acertar. No chão, me virei para olhar sem querer ver. Como havia imaginado, o general me perseguia furioso, tendo sua mascote sempre ao seu lado.
    - Enfureça, estraçalhe e mate, Beliel!!! – gritou o homem, enquanto se afastava do monstro.
    Foi só o desgraçado gritar que o mostro começou a se contrair, como se estivesse se digerindo, como se suas entranhas pegassem fogo e sua vida estivesse saindo por sua garganta em um berro enorme, um grunhido ensurdecedor misturado com gritos humanos, o que tive quase certeza de que ouvi, saindo do estômago daquele demônio.
    Ao mesmo tempo em que foi assustador, aquele show de horrores foi também desesperador. O monstro, depois de agonizar terrivelmente perante os meus e aos olhos de seu dono, parou, subitamente. Do nada, depois de ver o corpo da besta se esticar com dificuldade, sempre tremendo muito, vi, de uma vez só, saírem de dentro dele seis braços enormes.
    O que me fez gritar de pavor, enxergar minha morte naquela figura, esquecer qualquer possibilidade de esperança, foram aqueles braços. Eram braços enormes, compridos, finíssimos e tão negros quanto o resto do corpo do monstro. Mas o pior, o que me fez gelar ainda mais a alma, foi o fato de que aqueles braços, aquelas coisas nojentas que saíam daquele bicho nojento, eram braços humanos, com mãos gigantescas de dedos finos e calejados, de unhas negras cobertas de sangue, do sangue ruim da besta que tremia muito. Depois disso, de dentro do pequeno buraco que havia na extremidade do monstro, saiu uma cabeça enorme que parecia muito com a cabeça de um lobo. Tinha dentes saltados, gigantescos e sedentos, tinha olhos enraivecidos e completamente rubros, suas narinas saltavam à frente, junto de toda a grande extensão de sua mandíbula. A única diferença era que a cabeça de Beliel não tinha pêlos, era toda coberta pela gosma que saía de suas entranhas. Era completamente negra, como todo o resto e, ao invés de orelhas, possuía buracos profundos que se encontravam logo abaixo de seus chifres grossos e pontiagudos.
    Após sua transformação, Beliel ganhara um aspecto mais demoníaco do que antes, por incrível que pareça. O general então subiu em sua mascote, acariciou-o mais uma vez e disse algumas palavras perto de seus ouvidos. O monstro, depois de escutar, levantou a cabeça e parece que sorriu, antes de soltar um rugido, alertando-me que ele começava agora, a caçar.

 
CORPOS TRANCADOS

    Continuei a correr. O monstro, com seu dono já montado, jogaram-se contra os cadáveres. Estavam mais do que dispostos a tirar minha vida. Pisoteando os corpos sem vida, apressei-me tentando evitar o pior. A besta, em cima de todas aquelas pessoas, por ser pesada, movia-se com dificuldade. A cada passada que dava, afundava.
    Quatro de seus braços eram responsáveis pelo deslocamento. Tratava-se de um movimento pesado, desajeitado e bruto, enquanto que os outros dois, os anteriores, ajudavam-no a se erguer dos buracos que seu peso deixava e, quando se levantava, usava-os também para arremessar os mortos em minha direção.
    Tentem visualizar. Eu corria desesperado para conseguir salvar a minha vida por um campo enorme de corpos que a muito tinham sido assassinados pela mesma besta que me perseguia. Enquanto corria, pisando em cabeças, braços e costas, outros corpos eram lançados em minha direção. Alguns passavam voando longe, outros, logo acima de minha cabeça. Eu estava no meio de uma chuva de pessoas mortas, pisando e desviando das gotas que insistiam em cair. Caramba. Isso não acontece todo dia.
    Ao longe, finalmente encontrei algo além de mais uma montanha de corpos. Um portão dourado, de brilho majestoso que reluzia como o sol e quase me cegava. Este era todo cercado por grades que iam até onde a vista alcançava. Provavelmente aquele era a única saída daquele maldito lugar. Corri em sua direção.
    Chegando lá, a primeira coisa que notei foi que o intenso brilho que eu vi ao longe, se dava pela estrutura das grades que eram todas feitas de ouro maciço. Mas o que mais chamava atenção àquela estrutura, não era seu tamanho colossal, nem sua riquíssima composição, mas o fato de, ao longo de suas grades, o portão sustentar uma roseira negra. Esta tinha apenas uma flor azul, bem no centro do portão, mas seus ramos negros cobriam tudo. Ao longe, vi que Beliel ainda me perseguia, sempre com muita dificuldade de andar por sobre os corpos, mas sempre persistente.
    Como não tinha mais para onde correr, comecei a escalar o portão, mesmo ele estando coberto por uma roseira recheada de espinhos. Estava logo abaixo da flor azulada. Mesmo com as mãos sangrando, acabei chegando nela. Era de uma beleza estranha a rosa. Tinha pétalas grandes e um tamanho anormal, sua cor deixava rastros nos olhos pois sempre que a via parecia que nunca mais a esqueceria e, além disso, era fria, muito fria. Pude notar quando, escalando o portão pela roseira, passei com minha cabeça perto da rosa. Senti que o ar em volta dela era gélido, e sei que, por mais estranho que pareça, ouvi um sussurro, uma frágil respiração, como se a própria flor respirasse. Parei um pouco e percebi que não sabia mais o que fazer. Ela não tinha perfume algum, mas eu nunca me senti tão atraído por alguma coisa do que por aquela rosa. Por um segundo, esqueci que estava sendo caçado.
    - Queime a rosa! – gritou um estranho que vi ao longe do lado de lá das grades – Queime a rosa para abrir o portão! Ande logo! Ou quer morrer!?
     Eu não queria morrer. 
     Lembrei que tinha um isqueiro no bolso, aquele mesmo que eu usei para fazer a demonstração do charuto explosivo para aquele senhor. Peguei-o e logo comecei a botar fogo na rosa. Doeu-me um pouco o coração fazer aquilo, mas a beleza não justifica a morte.
    Enquanto aos poucos eu queimava as pétalas, os espinhos dos ramos começaram a se mexer sozinhos me ferindo ainda mais, me tirando ainda mais sangue. Mesmo assim, não parei nem por um instante de chamuscar a flor que, por fim, começou a queimar intensamente. No mesmo segundo que o fogo pegou ouvi, desta vez claramente, um grito feminino, uma voz rouca e aguda que penetrou meu coração como uma faca.
     Com o susto caí mais uma vez por cima dos corpos que cobriam o chão. Dele, vi a rosa queimando e dando lugar para um corpo humano. Assim que terminou de queimar por completo, ela revelou uma mulher de um belíssimo corpo, nua, dependurada no meio do roseiral. Todos os ramos e espinhos queimaram juntos da flor e só então a mulher caiu e o portão se abriu.


 O SANGUE DO DIABO


    Por detrás das grades de ouro: um paraíso. Acho que não posso definir melhor o que tinha na frente de meus olhos. Campos infindáveis de uma paz regida pelo balançar da grama, um vai-e-vem sempre suave e aconchegante.
    Atrás de mim o demônio. Na minha frente, uma mulher caída e um horizonte cheio de promessas de vida.
    Abaixei-me, levantei-a e levei-a em meus braços. Ela ainda respirava e eu podia sentir seu coração pulsar, mesmo que fraco, dentro de seu peito nu. Corri em direção ao campo florido, à relva que por um instante me pacificou a alma. Quando consegui subir o primeiro morro, vi logo a frente uma densa floresta. O campo não era tão grande quanto parecia ser. Entre as árvores, consegui descansar um pouco. Coloquei a mulher no chão e a empurrei para debaixo de uma raiz que sobressaltava o solo e que servia perfeitamente de esconderijo. Voltei-me para tentar avistar Beliel e seu general. Andei poucos metros em um silêncio ameaçador até sentir o chão tremer.    
    Beliel vinha ao meu encalço sempre se orientando pelo cheiro forte do medo que, por mais que eu tentasse, não conseguia deixar de exalar. Em um só empurrão arrancou uma árvore média que estava na minha frente para então me encontrar.
    Nos fitamos, encaramo-nos por oito segundos antes do general expressar sua vontade.
    - Coma a carne dele, Beliel!
    De súbito, a besta agarrou-me com suas enormes mãos e levantou-me até a altura de seus olhos. E assim ficou, parado, me olhando como se eu fosse seu último alimento, e por isso, tinha que ser admirado antes de devorado. Minha vida poderia, naquele momento, se resumir à um grito, mas não me dei ao luxo.   Simplesmente deixei a fera me levar à boca.
    Fechei meus olhos e rezei.
   
    …

    Zunidos incessantes quebraram o silencio da floresta. Passavam rente a minha cabeça, tanto que eu pude sentir o ar se deslocando. Quando Beliel ia começar a mastigar meu corpo, foi atingido ao longo de seu corpo gigante e grotesco, por vários disparos, fazendo-o urrar de dor e me jogar para longe.
    - Mas que droga! Da onde vêm esses tiros!? - escondeu-se o general preocupado tentando encontrar quem disparava enquanto saía da garupa de seu demônio.
    Perguntava-me a mesma coisa. Eu já estava quase acostumado com a ideia de servir de almoço e de repente alguém atira no demônio? Graças a Deus!
    “É melhor eu sair correndo daqui.” pensei.
    Mais uma vez levantei-me e apressei meus passos. Quando virei para olhar de onde saíam tantos tiros consegui enxergar um homem que a todo momento se escondia entre as árvores. Todos os tiros que disparava eram certeiros. O monstro não podia nem se levantar direito que já levava mais e mais tiros. Saí da direção das rajadas e fui na do atirador, sempre mantendo distancia, para não levar uma bala no peito. Quando cheguei à uma distancia razoável pude ver melhor, e o que vi me surpreendeu, mas também me fez ganhar esperanças. O atirador trajava-se como militar e também parecia ser de alta patente, assim como o general, tinha um porte altruísta e cabelos grisalhos. O atirador era o próprio velho a quem eu tentei vender as rifas e que segui até o inferno.
    - Senhor! - gritei para ele me reconhecer – Senhor!
    Ele me olhou com uma expressão séria e me desaprovou com os olhos.
    - Cale a boca idiota! Esconda-se! - disse o velho enquanto recarregava sua arma.
    Foi só o homem distrair-se por um segundo que quase levou um tiro no rosto. O general o havia encontrado e revidava com a mesma moeda. Começava então uma guerra. O fogo cruzado acertava a tudo e a todos. Joguei-me no chão para não ser atingido. Enquanto rezava, arrastei-me para trás de uma grossa árvore que resistia bravamente à chuva de balas. Não havia notado antes, mas do lado desta árvore estava o corpo de Beliel.
    Já não era tão ameaçador quanto antes. Agora que não respirava mais, o demônio pareceu-me bem calmo na verdade, sentia até um pouco de pena do bicho. Seu corpo preto reluzia à luz da lua que encobria-nos. Aliás, eu ainda não havia dito isso. Era de noite, uma noite escura e sem vida, assim como os olhos da criatura. Beliel era inteiramente grotesco e justamente por isso era tentador. Seus músculos saltavam à pele, seus dentes rasgavam o ar só pela presença. A besta era enorme, monstruosa. Fiquei ali, estático, sem conseguir parar de analisar cada linha, cada detalhe do corpo dele. Resolvi o que qualquer idiota resolveria e deixei me levar pela curiosidade. Quando dei por mim, estava tocando a pele de Beliel, acariciando-o assim como o general tinha feito. Era grossa e estava mais fria do que o comum para um cadáver. Seu sangue escorria de todos os buracos feitos pelo velho, ou melhor, pelas balas dele. O líquido negro tinha algo de grotesco também, era pegajoso, tinha uma consistência densa e brilhava um pouco. Não me contive, tive de tocá-lo e ao fazê-lo, arrependi-me amargamente.
    Amargo como o próprio gosto da morte, repulsivo como o ódio, e até insolúvel de dentro de minha mente uma vez que a tocou. Talvez até indescritível, mas prometo esforçar-me. Meu corpo paralisou-se, meu coração de súbito bateu mais rápido do que já estava, meu sangue gelou-se, todos os pêlos de meu corpo arrepiaram-se, minha garganta se contraiu, minha boca secou e minha cabeça esvaziou, meus lábios secaram e racharam, minha alma se afastou de mim e, durante aqueles poucos segundos, derrubei uma única lágrima no chão imundo daquele lugar. Me vi criança, correndo despreocupado. Senti uma ponta de felicidade antes de me ver entrando no inferno.
    - Garoto, não toca nisso, sai daí agora! - gritou o velho enquanto ainda enfrentava o general – Não sabes que tocas o sangue do diabo?
    Agora eu sabia e principalmente, entendia o porque. Pelo menos os porque de o chamarem assim. Aquele sangue me matava aos poucos, por um instante jurei sentir a mão do próprio diabo, jurei ouvir sua gargalhada enquanto ele consumia minha alma.
    Um baque me tirou da escuridão.
    - Idiota, por acaso não sabeis o que fazes? Se quiser morrer diga logo que eu mesmo o farei com minhas próprias mãos e de um jeito muito menos doloroso! Não vês que pões a mim em perigo também? Vamos! Use de suas forças restantes e levante-se, você acaba de devolver vida à besta.
    Atordoado, dei sustento às minhas pernas e corri mais uma vez floresta adentro. Como já não tinha mais energias tive de ser ajudado. Enquanto corria comigo apoiado em seu ombro o velho não diminuiu nem por um instante o ritmo. Irônico, mas foi isso que aconteceu. Aquele homem era muito mais forte do que eu havia julgado. Quando o vi sentado, parado no ponto de ônibus com uma bengala na mão, eu não poderia imaginar. Agora devo minha vida a ele.
    Atrás de nós o impossível se realizava. Beliel levantou-se bem diante de meus olhos amedrontados, o general analisou seus ferimentos e, sem perder mais tempo, montou nas costas do demônio para dar continuidade a caça.


NELCHAEL


    - Aqui não encontraremos chance alguma, precisamos nos esconder. - disse o velho com ar de experiente.
    - Meu Deus! - disse desesperado ao lembrar-me.
    - O que foi agora!? - assustou-se o homem.
    - A mulher! Me esqueci da mulher!
    - Que mulher?
    - Quando aquela rosa que trancava o portão para esta floresta terminou de queimar uma mulher apareceu do nada no lugar da flor!
    - Mas que droga... Venha, abaixe-se e fique quieto. Fiquemos aqui debaixo destas raízes até que Beliel se afaste. Silêncio agora, criança.
    Abaixamo-nos e escondemo-nos para que a besta não nos visse. O demônio, depois de procurar por alguns minutos naquela área, logo afastou-se. Estávamos aparentemente seguros. Depois de mais um tempo de espera, o velho saiu de nosso esconderijo para certificar-se de que estávamos em segurança. Logo depois eu saí.
    - Diga-me, que mulher era aquela que me falava? - perguntou o senhor com um tom áspero.
    - Ela apareceu aonde estava a rosa de pétalas azuis... Flutuou por alguns segundos e logo caiu sobre o chão de mortos que passei, antes de chegar nesta floresta. Ela estava completamente nua... e... seu coração quase não batia mais. Como estava viva eu a trouxe comigo nos braços, mas senti que aquela coisa se aproximava. Então a coloquei debaixo de uma dessas raízes, como a que estávamos até agora para escondê-la. Logo depois aquele desgraçado me encontrou. Depois de tudo isso eu acabei esquecendo dela...
    O velho ouviu tudo em silêncio. Enquanto eu falava seu rosto foi mudando de expressão. Depois, abaixou a cabeça, parou um pouco para respirar, afastou-se de mim alguns metros, pôs a mão no rosto e partiu para cima de mim.
    - Deus! Você sabe o que acabou de dizer moleque!? Conheces a gravidade de seu erro, criança estúpida!? Eu deveria deixá-lo morrer e sangrar entre os dentes do diabo, ou melhor, eu deveria matá-lo agora mesmo pra ver se talvez assim meu dia fique melhor. - esbravejou.
    - Senhor, por favor, me desc...
    - Mas que droga! Aonde eu estava com a cabeça quando te salvei...? Precisamos voltar para resgatá-la imediatamente. Para seu conhecimento, ela é a chave que sela os portões do inferno. Sem ela o general poderá transitar livremente por onde quiser.
    - Eu a escondi, lembra?
    - Então me leve agora até ela, antes que seja tarde demais.
    Eu já não entendia mais nada. Estava em uma floresta enorme, com um velho pistoleiro que parecia ser asmático, correndo para não ser mastigado por um monstro enorme ou baleado por um general homicida, atrás de uma mulher que pelo que parece, deveria ser encontrada acima de tudo. Resolvi calar-me e, sem questionar, seguir as ordens do homem.
    Voltamos ao lugar onde os dois militares haviam trocado tiros. O sangue de Beliel, ainda fresco, estava espalhado. Procuramos durante um tempo o lugar onde a mulher poderia estar escondida, mas não a encontramos. Começávamos a desistir.
    - Devemos fazer algum acordo com o general. - começou a raciocinar o velho.
    - Oras, mas por quê?
    - Com certeza ele descobriu o corpo da mulher e pretende matá-la, mas por enquanto ainda não o fez. E só não o fez porque ele quer alguma coisa de nós... ou... de você! É isso! Por que ele estava te perseguindo, rapaz? Ele normalmente deixa os prisioneiros que escapam viverem.
    - Então tem mais gente que já escapou dele?
    - Fora você, eu. E já estou aqui há dezoito anos e até agora não encontrei um meio de escapar daqui.
    - Como não encontrou saída? Eu falei com você antes de vir parar aqui! Te ofereci rifas que vinham com um charuto explosivo de brinde, lembra-se? Como você nunca saiu, se foi você que me guiou até aqui!?
    - Você é o garoto das rifas? Não o reconheci quando te vi aqui dentro. Depois de apenas alguns dias você mudou muito então. Deve ter passado por maus agouros.
    - Por favor, não mude de assunto! Eu ainda não entendi como vim parar aqui!
    - Você não devia ter falado comigo, muito menos me seguido. Será que você é surdo? Eu não tinha dito para você me esquecer, rapaz? Por que você me seguiu?
    - Por que... droga... nem eu sei ao certo. Alguma coisa no senhor me fez insistir. Me atraiu. Droga, o senhor deveria ter sido mais claro para não me deixar segui-lo! - boquejei.
    - Mais claro do que eu fui? Eu praticamente te chutei da minha frente! - gritou o velho.
    Já não podia mais contestar. Ele tinha razão. Pelo que me lembro, fui eu quem resolveu correr atrás dele não medindo esforços. Mas eu também nunca imaginaria que me esforçaria tanto.
    - Muito bem, – continuou falando enquanto retomava o fôlego e a calma – preste bastante atenção. Não é muito fácil de se entender, mas, pelo que você me contou e, se eu estiver certo, é você quem vai nos libertar deste inferno.
    - O quê?!
    - Você é a segunda alma que conseguiu sobreviver. Agora estamos em mesmo número em relação a eles. Agora é dois contra dois.
    - Espera um pouco, vai com calma...
    - Na verdade, garoto, você não poderia me ver fora daqui pois estou morto. Meu espírito já está velho e cansado, como você pôde comprovar. Lá fora os anos passam muito rápido para mim e, se eu não voltar logo, posso morrer. Aqui meu tempo se paralisa até o dia em que eu conseguir sair. Eu tenho sim como sair e voltar ao mundo comum, mas não sobreviveria nem por uma tarde. Quando saio é apenas por algumas horas, para fugir um pouco desse inferno. Você conseguiu me ver, o que é o mais impressionante e também triste.
    - Você está morto? - interrompi-o um pouco perdido em toda esta explicação.
    - Sim. Fora daqui eu estou morto, mas dentro eu vivo novamente. O fato de você poder me ver lá fora se dá pela possibilidade de que você está destinado a morrer aqui. Tente entender. Eu sei que é triste saber dessa maneira, mas você morrerá aqui. - concluiu, áspero e frio.
    Tentei raciocinar um pouco. A noticia de minha morte me fez ficar um pouco tonto. Acho que é comum quando isso acontece. Parei e respirei alguns segundos antes de tentar entender melhor.
    - Mas o que eu fiz para merecer isso?
    - Me conheceu no ponto de ônibus.
    - Na verdade... desculpa perguntar isso só agora, mas eu ainda não sei seu nome.
    - Nelchael.
    - Nelchael? Pelo jeito você é estrangeiro, não é? - tentei brincar, para espairecer um pouco.
    - Na verdade não. Eu sou um anjo.
    - Um... anjo? Como assim você é um anjo?
    - Acalme-se. Sei que é complicado entender. Peço mais uma vez para que você abra seu coração, liberte sua mente.
    - Ok... vamos por partes. Toda hora você fala do lugar que estamos como aqui dentro. Aonde estamos exatamente?
    - No inferno.
    - Pronto... agora é que eu não estou entendendo nada mesmo.
    - O general e Beliel, que você já conhece, não passam de servos de Lúcifer. Eu sou um anjo invocado para destruir o poder deles. Mas meus esforços foram todos em vão por enquanto. Aquele general é o que chamamos no céu de anjo-contrário. Sempre que um anjo nasce, seu oposto também é criado. Aliás, você morreu do quê garoto?
    - Eu ia te perguntar justamente isso! Eu não me lembro de ter morrido... lembro de acordar depois de uma pancada na cabeça, mas acho que isso não teria sido o motivo de minha morte.
    - Você sentiu a dor da pancada depois que acordou?
    - Sim!
    - Depois que morremos, não sentimos mais a dor que causa a morte. Então você não morreu mesmo... então... provavelmente...
    - Provavelmente o que?
    - Quantos anos você tem?
    - Dezoito.
    - Então você não está morto mesmo, e mais, provavelmente eu seja seu anjo da guarda... - disse Nelchael, sempre com a expressão séria e pensativa.
    - Meu anjo?
    - Isso explicaria muita coisa... sim... Por isso você consegue me ver lá fora, por isso você acabou aqui.
    - Mas eu não deveria ter morrido para ir para o inferno?
    - O fato de que eu sou seu anjo da guarda implica nessa mudança de regra, ou seja, de um vivo entrar no mundo dos mortos. Precisamos aproveitar esta oportunidade.
    - Oportunidade?
    - No reino dos céus existem diversos tipos de anjos divididos hierarquicamente em classes. Os anjos da guarda não zelam e protegem os seus escolhidos em vida, como você deve ter pensado, mas justamente ao contrário. É na morte que nós protegemos os humanos. O fato de você estar aqui pode ser explicado. Deus quer que este inferno seja destruído.
    - O quê? Você está dizendo que somente nós dois poderemos destruir todo o inferno?
    - É preciso estar vivo para interferir definitivamente no céu ou no inferno. Além disso existem infinitos tipos de inferno. Este campo imenso é apenas um. Existe aqueles que vocês tanto falam, com chamas por todos os lado e castigos para os pecadores sim, mas esse é apenas mais um. O que realmente cria um inferno é um pecador. Sempre que um pecador morre e este é julgado à enfrentar seus males, um inferno é criado. Para cada pecador morto existe um inferno.
    - Mas... como podemos destruir tudo isso?
    - Matando Beliel.
    - Pena que isso não vai acontecer. – disse uma voz rouca que inspirava à morte e que, infelizmente, me era familiar – Você esqueceu de mencionar a parte mais intrigante de toda essa história. Esqueceu de dizer a ele acerca das consequências de se estar no território de Lúcifer. Nenhum vivo pode entrar no inferno e simplesmente sair. Será que você também contou a ele que ele terá de dar a vida para que se concretize essa sua missão ridícula, Nelchael? - riu o general com um sorriso malicioso nos olhos enquanto descia de seu monstro.
    - É verdade Nelchael? - perguntei já decepcionado – Eu não vou sair daqui com vida?
    Nelchael baixou a fronte e nada respondeu.
    Senti-me uma peça, um mero objeto, um brinquedo que deveria servir à vontade divina, e aquilo me desanimou profundamente. Vi-me incapaz de qualquer atitude, como se meu destino fosse previamente resolvido sem meu consentimento. O irônico é que eu nunca acreditei em destino e parece que Nelchael sabia disso.
    O anjo aproximou-se de mim, pôs a mão sobre meu ombro e por pensamento me disse: ”Não perca as esperanças, aceite a situação livre de temor. Enquanto você temer algo e só pensar em fugir, sua mente estará tolhida pelo medo e, como reflexo deste estado mental, surgirão mais problemas que aumentarão ainda mais o medo. Essas sombras desaparecerão quando você notar que faz parte de um enorme ciclo de vida e que, acima de tudo e por isso, é responsável por ele. E mais uma coisa... não existe esse negócio de destino.”
    Após tais palavras Nelchael virou-se para o general e fitou-o corajosamente. E eu não tirava os olhos dos dentes de Beliel.
    - Entregue-me a mulher. Sei que estás com ela. - ordenou com voz firme meu guardião.
    - Venha pegá-la, seu desgraçado! Ela está no estômago de Beliel! - riu-se o general.
    Minutos de tensão. Ninguém se movia. Qualquer ação poderia ser a última. Mas isso não me preocupou muito. De qualquer jeito eu morreria.
    Aproveitei que o general só tinha olhos para Nelchael e em um movimento rápido peguei da cintura do anjo sua arma e descarreguei-a no general e em seu demônio junto de toda minha raiva. Minha melhor vingança. Depois, joguei-me floresta adentro. Como planejado, o general e Beliel me seguiram.
    Apesar dos tiros que levou, o general continuava vivo, só que agora ainda mais furioso e com sede de meu sangue. Por mais que eu corresse ainda não conseguia ser mais rápido que a besta de seis braços. Nelchael correu atrás da gente, gritando para que eu me escondesse e ele cuidasse disso, que era obrigação dele proteger-me. Meu cansaço tomava conta de meu corpo e aos poucos meus passos retardavam-se.
    Em questão de segundos olhei para trás desesperado. Eu não conseguia correr mais que o caçador. Olhei para trás apenas o tempo suficiente para ver Beliel pulando imponente, com sua boca enorme, com seus dentes enormes, para cima de mim. Seria engolido em uma só bocada.
    Seria, se Nelchael não tivesse pulado na frente do demônio para ser engolido em meu lugar.
    - Nelchael!! - gritei desesperado.
    Beliel tragou o anjo e em mais um golpe o demônio me nocauteou. Caí longe. E assim que abri os olhos o monstro já me prendia entre suas mãos.
    - Finalmente estás no lugar a que pertences, verme asqueroso. Não sabes que ninguém sobrevive à força do inferno? Nenhum humano que teve a ousadia de me apresentar a face teve um destino diferente do que o te espera. Se realmente crês em Deus é melhor rezar, mas já vou avisando, ele não costuma descer aqui! - gargalhava o general, fartamente.
    Eu não podia me deixar ser derrotado por tais palavras. O general me irritava ainda mais, cada vez que eu o encontrava. Aquele babaca...
    - Quer realmente que eu faça minha última prece? Pois saiba que agora, mais do que nunca, minha fé se renova e cresce a cada segundo! - desafiei-o, confiante.
    - Sim! É claro que quero! Vamos, deixe-me ouvir-te rezando! Sua voz trêmula é música para meus ouvidos! Mas por favor, seja breve, pois Beliel tem fome!
    - Não deveria ter tanta ousadia, diabo! Você é ridículo perto de mim ou de qualquer outro homem que matou... deveria se envergonhar de ser como é! Todos que nascem e morrem, vê em você apenas uma maneira de expressar o que é ruim! Queria muito saber como você se sente sendo lembrado apenas como algo a ser repelido, algo ruim, que todos querem distância.
    Os olhos do general enchiam-se de ódio a cada palavra que eu pronunciava. Podia ver suas veias encherem-se de seu sangue sujo e blasfemo.
    Ele desceu de sua montaria, ajoelhou-se diante de meu corpo assustado que permanecia imobilizado, embaixo das enormes mãos de Beliel, tomou ar e disse:
    - Blasfêmia! - gritou o demônio – Cala-te humano! Não vês que morrerás? Como ousa aumentar ainda mais a minha cólera? Patético é você que não sabes com quem falas. Sofrerá tudo o que eu venho sofrendo todos estes anos como castigo por esta representação patética, por tentar me desfazer! Não me conheces para dizer quem sou! Não passou pelos séculos de dor que tive de enfrentar! Como prêmio pela eternidade que passei aqui ganhei mais séculos de prisão, de maldição, de morte, dor e sofrimento. Todo o maldito tempo, todas as malditas horas a única coisa que ouço são os gritos dos que sofrem aqui dentro, ouço suas súplicas e lamentações.... Mas sabes o que é pior? Depois de tantos anos, eu até que comecei a gostar disso! Aqui, no inferno, vive-se dia após dia, ano após ano, século após século e sua alma não desaparece nunca. Eu não morro! Você acha que eu já não tentei sair daqui com a morte? Ingênuo! Só ganhei mais vozes na minha cabeça depois de tentar sair deste sofrimento através dela..... Um dia me enforquei em uma das árvores desta floresta. Senti a corda apertando meu pescoço como um uma cobra aperta sua presa, senti o ar fugir de meus pulmões, senti meu coração explodindo e, por fim, olhei pela escuridão eterna que preenchia os olhos da morte. Incrível como ela apenas me olhava, mas não fazia nada. Fiquei agonizando em frente daquela figura monstruosa durante horas e sabe o que ela me disse? - perguntou o general me olhando com lágrimas nos olhos.
    - O quê?
    - Bem-vindo ao inferno....
    O general, depois de me desejar as boas-vindas, cuspiu em minha face, acariciou seu monstro e montou nele novamente, ordenando-o:
    - Coma.... - apontando para meu corpo.
   
    Fechei meus olhos.
































































































































































































































RHIAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHRRRRRRRRRRRRRRRRRRRRRGGGGGGHHH!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!


















































































Só pode ter sido uma intervenção divina.










































































    Um urro amedrontador saiu da garganta de Beliel que debatia-se violentamente, lançando o general ao longe.
    - Demônio estúpido! O que está fazendo? Mate-o logo! Coma-o agora!
    A besta continuava a debater-se desesperadamente. Acabou por jogar-se ao chão destruindo tudo que estava por perto em uma fúria incontrolável. Jogava-se contra as árvores que estremeciam e até caíam com o imenso choque da cólera. Depois, Beliel parou bem na minha frente. Estava visivelmente exausto, seus olhos estavam sobressaltados e sua boca aberta denunciava o cansaço. Urrou mais uma vez. Novamente tirou o ferrão de dentro de suas costas e o fez dançar no ar. Apontou-o para a minha direção. Começou a perfurar seu próprio corpo até acertar o centro de sua própria cabeça. Só então a besta cessou e caiu, morta.
    O general assistiu aquilo tão assustado quanto eu. Tentávamos entender o que havia acontecido, mas cada vez que olhávamos para o corpo do demônio, nos desesperávamos. Ainda no chão, o homem olhou para mim e me fitou com todo o ódio que possuía dentro de si. Correu em minha direção e jogou suas mãos para meu pescoço.
    - Isso já está passando dos limites, seu desgraçado. Deixemos de enrolação. Vou acabar com você agora mesmo...
    Mais uma vez cerrei meus olhos perante a arma do general apontada para o centro de meus olhos, só que desta vez, ele, com a mão trêmula, fez questão de pressionar o cano da arma sobre minha testa, só para me fazer sentir o quão fria é a foice da morte.



… um tiro ecoa por toda a floresta. Pássaros levantam voo assustados enquanto o sangue rega o chão.



    A bala havia atravessado o pescoço dele. Seus olhos perderam o brilho na hora do disparo e seu sangue espalhava-se por sobre o corpo do condenado. O sangue escorria sobre meu corpo e meu coração disparava ainda mais assustado. “Estou vivo?” pensei.
    Um projétil havia sido disparado, mas este vinha do cano da arma de Nelchael. O general caía desacordado.
    - Nelchael!? - assustei-me.
    - Venha logo garoto. O demônio ainda não morreu.
    - Como voc...
    - Depois te explico. Levante-se logo.
    Fiz o mandado.
    Foi praticamente um milagre. Quando Nelchael soube que a garota havia sido engolida por Beliel, tratou logo de ser devorado também. Nelchael continuava vivo dentro da besta e, de dentro dela, encontrou a mulher e a trouxe para fora. O que explica o repentino falecimento do demônio.
    Ela estava do lado do corpo gigantesco do monstro. Tentei acordá-la mas ela não respondia. O general começava a levantar diante de nós, mesmo com um buraco no pescoço.
    - Rápido!! O general está acordando!
    Tudo piorava novamente. Mesmo com todos os esforços para ressuscitar a mulher eu não conseguia ver melhoras. Apesar de eu estar sentindo o sangue dela correndo, seu corpo estava tão frio quando os ventos gélidos dos pólos que correm por entre os pinheiros da Califórnia. Isso me contaminou. Meu sangue também gelou com a possibilidade da beleza reencarnada no corpo daquela mulher, tão frágil, tão preciosa, morrer.                          
    Peguei-a nos braços e a levei dali. Era o mínimo que eu podia fazer. Andei alguns metros e logo caí. Uma bala havia me acertado de raspão na perna esquerda. Olhei para o rosto gentil da mulher e chorei.
    - Acorda... - implorei para o corpo dela.
    E assim aconteceu...
    Ela abriu os olhos. Olhos assustados e cheios de dor. Penetraram-me a alma. Ela me tocou o rosto.
   
    …

    Assim que senti o toque me veio um imenso calafrio. Senti aproximar-se de mim uma força sobrenatural, algo que, por mais caótica que pudesse se tornar minha situação, me transmitia uma paz celestial em meio ao inferno em que eu me encontrava. Assim que senti o toque dela, perdi o juízo, a noção de tempo, o controle. Minha respiração e o bater de meu coração tornaram-se fortes, tão fortes que naqueles instantes eram os únicos sons que eu conseguia ouvir. Senti a mão pesar sobre mim, antes leve e carinhosa, agora pesada e dura. Senti meus ossos começarem a trincar e meu sangue prender por dentro de meus músculos. Gritei desesperadamente mas parecia que ninguém me ouvia. Tentei afastar a mão dela de meu rosto, mas meus esforços pareciam aumentar ainda mais o peso dela sobre mim. Uma rajada de luz vinda dos dedos esmagadores cobriu-me.

    Desmaiei, tamanha era a pressão.

    Acordei no escuro. Em um lugar onde apenas via meu próprio corpo. Todo o horizonte, todo o infinito agora estava reduzido a uma escuridão amedrontadora. A escuridão gelou minha alma. Lá longe vi uma luz que aumentava aos poucos, mas sempre constante, até clarear tudo em minha volta. Agora tudo limitava-se a um branco impecável. Também me causava pânico. O que estava acontecendo afinal?
    Ouvi um ruído, algo como um sopro, gentil mas forte.
    Todo o branco começou a encolher-se dando lugar a escuridão novamente mas, assim que tudo era negro de novo, uma explosão de luz formou vários pontos luminosos, de tamanhos variador, como as estrelas em um céu limpo. Elas formaram constelações inteiras. Algumas acabaram se unindo formando planetas. Logo tínhamos toda uma galáxia, com sol e tudo.
Sopro.
    Estava em um dos planetas. Era imenso e tinha um horizonte lindo com nada que eu já tinha visto. Do chão nasceram flores por todos os lados, brotaram nascentes que inundaram todo o planeta, montes de terra surgiram das águas.
Sopro.
    A densidade do ar aumentou consideravelmente. Das águas brotaram plantas e delas saíram todo o tipo de vida.
Sopro.

    Ouvi gritos no escuro. Abri meus olhos e tinha a doce feição da mulher na minha frente e em nada mais reparei, a não ser naqueles olhos inquietos.    
    - Finalmente acordou... qual o seu nome?
    - Ana... - sussurrou aquele aquele anjo em forma de mulher com a voz fraca e trêmula.
    - Ana, agora me escute. Estou muito ocupado agora e gostaria que você se escondesse até tudo se acalmar, tudo bem?
    - Como saberei?
    - Assim que tudo voltar ao normal eu te chamo, tudo bem?
    - Tudo bem...
    Voltei para ajudar Nelchael assim que tive certeza de que ela estava bem. Mas bastou eu chegar até ele para querer voltar e correr ainda mais para longe dali levando Ana comigo. Nelchael estava caído sob os pés do general, tremendo, derrotado. Assim que cheguei e vi tal cena, o monstro virou-se para mim e sem meias palavras começou a correr em minha direção. Estava mais do que disposto a matar-me.
    Corri por pouco tempo até que ele me alcançou.
    - Idiota. Tu não podes enfrentar-me. Sou três vezes mais forte que aquele anjo estúpido! Um humano como você não é nada diante de minha presença! - esbravejou o general, vitorioso. - Vejo que conseguiu acordar Ana de seu sono. Bem, que seja, agora preciso apressar-me, quero acabar logo com sua vida, seu verme! Mas antes quero presenciar seus olhos entenderem que sua vida patética se findou assim que pôs os pés aqui. Venha, quero ver como seus olhos ficam quando perdem a esperança.
    Dizendo isso, catou-me pelos cabelos e arrastou-me pelo chão inundo de sangue da floresta. O general, em sua ira desmedida jogou-me ao lado do corpo acabado de Nelchael, que por um milagre, ainda respirava. Mas não conseguia sequer falar, tamanha era a gravidade de suas feridas.
    - Veja garoto, – cuspiu o general – veja seu pobre protetor. Veja o estado dele. Adivinhe... você é igualzinho a ele. Você é um verme que não poder fazer nada para mudar meus planos. Veja o as feridas que tive de abrir por todo o corpo deste anjo miserável para que ele entendesse que nada pode fazer. Garoto, você é só um humano. Por sua insolência para comigo e por ser estúpido ao achar que poderia sair vitorioso desta sua aventura eu o condeno à morte.
    Sacou mais uma vez sua arma e a apontou para mim. Engatilhou. Mudou a direção e atirou bem no meio da fronte de Nelchael. Assisti a tudo quieto, gritando apenas com meus olhos.
    O demônio virou-se friamente e andou na direção oposta à do tiro enquanto que eu fiquei ali, estagnado, chorando copiosamente mas em completo silêncio. Queria morrer logo.


UM PUNHAL, UM CORAÇÃO E UM NOVO DIA



    Não demorou muito para que o general voltasse, ainda com a mesma expressão gélida, só que desta vez, ele trazia Ana pelos cabelos. Assim que chegou na minha frente parou. Ana choravaM como uma garotinha que acabara de levar uma surra do pai. Minha face continuou com a mesma expressão e nenhum músculo de meu corpo mexia-se. Apenas meus olhos conseguiam se mover, pelo menos o suficiente para assistir a tudo aquilo. O general jogou Ana de modo que ela parou bem na minha frente. Sem esperar quaisquer palavras ele empunhou sua arma mais uma vez e atirou no peito da mulher.




    ...




    Ouvi risos.
                    Risos vindos de tão perto.
                                                     Tão perto de mim, pensei “é possível?”
                                                                                    Nelchael ria enquanto limpava o sangue de sua testa.





    - Não devia tê-la matado.
    - Não devia por quê? Aqui eu posso tudo, aqui eu sou Deus!
    - Não sabes o que acaba de fazer? - continuou Nelchael, sempre muito incisivo – Não te lembras da profecia? Das consequências? Por acaso lembras de quem és?
    - Não me metes medo, seu verme! É claro que sei quem sou! Sou o mal encarnado, sou a dor e o castigo, sou o carniceiro das almas!
    - Tu és um dos anjos do senhor! Um dos que foram banidos do reino dos céus e caiu na desgraça dentro da escuridão eterna! Tu és Henker!
    - …O que.... o que disse? De que me chamou?
    - Parece que não te lembras do dia em que veio parar aqui, não é mesmo? Pois eu lembro. E agora vejo como és pequeno, aqui, sempre às ordens de Lúcifer, acabou por esquecer o próprio nome... Você acabou por se tornar um simples espectro, um vazio absoluto dentro de sua própria grandeza, grandeza essa que existe apenas dentro de si. Por acaso não vês isso irmão?
    - Irmão? Quem é você para me chamar de irmão? Cale-se verme, cale-se e morra.... Morra! - bravejou o general, atirando furiosamente contra Nelchael, que, por um milagre ou dois, simplesmente não era alcançado pelas balas – Não! Você não pode ser, ninguém pode...
    Henker caiu em prantos. Ajoelhado tentava se auto-consolar com o que acabara de ouvir. Por um momento, era ele que desejava a morte. Nelchael aproximou-se do derrotado.
    - Henker, não se faça desmerecedor do perdão de Deus. Volte para a vida, irmão.
    - Você não pode fazer nada aqui. Ninguém pode. Estamos no inferno, lembra-se?
    Foi então que o mais assustador aconteceu. Todo o inferno começara a desmoronar, como uma última esperança de prender as almas dos condenados. As árvores gritavam, a terra estremecia e os pássaros fugiam aos montes. Folhas caiam como se o vento as castigasse, o céu começava a cair por sobre nossa cabeças. As árvores morriam em segundos, o pássaros assim que levantaram vôo perdiam as penas e se consumiam em chamas ardentes até caírem em carne viva novamente ao chão manchado pelo sangue da terra. Os céus juntavam-se e faziam cortinas imensas de fogo, prendendo assim, as milhares de almas que tentavam correr ávidas pela libertação.
    - O que está acontecendo aqui? Que está se passando? - assustou-se o general.
    - Você cometeu um erro imenso ao matar Ana, a primeira alma de seu inferno. Você matou a origem do mal, destruiu a si mesmo e este mundo corrompido. Você se libertou irmão, graças a De...
    - Cale-se Nelchael! Isso não pode estar acontecendo, eu não tenho irmãos e este inferno não pode ser destruído pois eu não posso ser destruído, nada pode me deter! Eu sou o guardião das almas, eu decido quando elas podem ser libertas e eu ordeno que voltem! Voltem todas imediatamente! Agora!
    - Assim que atirou naquela mulher você entregou-se nas mãos do destino e da justiça dos céus. Tu te encontrarás agora com o julgamento final de sua existência, que eu me atrevo a dizer, foi patética! Você não passa de um traidor que por inveja ao amor de Deus se corrompeu e agora rouba almas! Você não presta, essa é a verdade, não presta para nada! Eu tentei te ajudar de todos os modos mas tudo o que tenho agora é uma completa indiferença à sua presença patética!
    Nelchael estava alterado. Seus olhos, por um momento, deixaram aquela expressão macia de sua alma puritana que tinha dado lugar a um abismo de desgosto. Notei o rancor que seu coração passava, pois sua fala, sua alma, seu físico se expressavam como tal.
    O chão partiu-se, trovões rasgaram o céu que se fechava em fogo e tempestade. O fim estava apenas começando.
    De Ana um brilho imenso, assim como aquele que ocorrera quando ela tocou em mim, se espalhou por todos os lados. Seu corpo de súbito levantou-se do chão e não parou de elevar-se. Enquanto subia, Ana, tomada por este brilho imenso, profetizou.
    - Eu sou o pecado em sua origem, eu sou a fonte do mal, aquela que libertou todos os males, sou o epílogo dos dias e o prólogo da noite eterna. Ouçam todos, sou o oposto que transpassa todas as barreiras da humanidade apenas para infectar a mente dos filhos de Adão. Sou o começo do desespero, sou a morte viva entre os desejos anciões de ganância e luxúria. Sou o mal ingerido pelo corpo da mulher e o castigo de sua pobre alma que teve de passar o resto dos milênios condenada a viver aguardando até o dia que a libertassem da vergonha e morressem pela arma da inveja. Quem o fizer, quem ferir este corpo, foz dos rios de lava dos céus, quem for capaz de destruir um vida pelo simples prazer de fazê-lo deve ser ingerido pelas entranhas matadoras dos céus! O inferno em seu princípio, em sua criação original, em sua pior forma, te espera Henker!
    Ana estava morta. Podia se ver pelos olhos inanimados, sem alma, que fundos choravam pelo que tinha de ser feito. O general dera seu último suspiro de resistência. Ana ergueu as mãos e uma luz saiu de seu pequeno e frágil corpo atingindo e envolvendo o condenado. Este foi levado até a mulher, virou parte da luz q a envolvia e entrou no ventre dela. Podíamos ouvir gritos longínquos pedindo, implorando por perdão, pelo resto de sua mísera vida. Ouvi e até hoje ouço longas lamúrias que ressoam pelos anos como uma praga que toma conta de nossa carne e nos consome inteiros, como uma cicatriz que o tempo nunca apagará.
    O general, anjo negro guardião das almas vilãs e carrasco dos corpos perdidos em seus pecados agora entendia o significado da dor que tanto causou. Como Henker não morria, seu corpo permaneceu sofrendo com as dores infernais que o atacavam, mas seus coração ainda batia, sempre muito agonizante e acelerado, seus olhos ainda lacrimejavam a cada lança fincada em sua carne. Era demais para qualquer um. E pensar que tudo aquilo vinha de Ana, uma mulher tão bela e segura, uma alma sofredora e um coração tão puro.
Sopro.
    Ana caiu inconsciente, mas novamente respirando. O general havia perecido, sua alma tinha se desintegrado em seu próprio pecado. Estava acabado. Os céus mais uma vez clarearam-se, o fogo que os envolvia apagou-se, a terra reclamava forma nova. Começava então a renascer, a encher-se de vida novamente. Virei-me para Nelchael:
    - Acabou?
    Nada disse o anjo, apenas apontou-me Ana. Virei em sua direção e ela estava com um ligeiro sorriso nos lábios.
    - Ana! Que bom vê-la bem! Pensei que tinha morrido.
    - Mas ela morreu. - explicou Nelchael – Agora reviveu para libertar as almas de todos aqueles corpos que você viu. Por Deus está tudo bem agora.
    - Abraça-me, por favor. - pediu-me Ana.
    Abracei-a, feliz por tudo que passamos ter finalmente acabado, com todos vivos, pela profecia de minha  morte estar errada. Tentei respirar aliviado, mas alguma coisa impedia-me, meus pulmões reclamavam ar.       Senti que algo me atravessava.
    - Desculpa... - disse Ana com lágrimas nos olhos enquanto retirava um punhal dourado de meu coração.
    - Ana... por que fez isso? - perguntei agoniado sentindo minha vida esvair-se.
    - Era preciso para que tudo acabasse bem. A profecia previa isso. Desculpe-me.
    - Nelchael... ajude-me... - implorei.
    - Seu coração agora pertence aos céus, por isso, morra em paz.




    …






























 
    - Acorda garoto! Cê vai acabar perdendo o ponto de novo!
    O cobrador do 130 já estava impaciente. Ele me conhecia e sabia o que falava. Eu já perdi o ponto diversas vezes sonhando acordado.
    Desci no ponto e pus a mão nos bolsos. Lá estavam aquelas malditas rifas coladas com aqueles malditos charutos explosivos... quem compraria uma coisa dessas? Olhei para todas as pessoas do ponto. Parecia que faltava alguém. Continuei meu caminho até que logo cheguei em casa. Fui para meu quarto, dei um beijo em minha mãe pelo caminho, tirei minha roupa e deitei na cama. Estava exausto. Não sabia exatamente porque. Senti minha cabeça doer um pouco. Ao passar a mão nela notei um calo. Estranho. Olhei para o teto e dormi.
    ...
    - Ah....!
    Acordei suado, respiração rápida, coração a mil. Senti uma dor violenta dentro do peito. Respirei fundo, levantei-me e abri as cortinas. Olhei longe e vi o sol.
    “Sobrevivi a mais um dia” pensei.
    A luz irradiou tudo.

FIM

5 comentários:

  1. leo, li até a metade...
    o personagem, é quem escreve no começo? ou o da história, que esta se narrando. Isso é uma sacada até legal, explora isso.
    Mas, na boa, seja mais sintético, qual a necessidade de falar de outros Augustos, isso só me leva a uma análise psicológica de quem esta escrevendo, a leitura tem que ser mais tranquila.
    Esta indo bem, vou terminar de ler e comentar mais.

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  2. O personagem é que está escrevendo, desde o começo. Usei do significado e das pesquisas referentes ao nome para deixar claro ao leitor: não existe uma pessoa em si que vive o que está narrando, não há uma personagem e sim um nome. Notou que até agora eu não descrevi fisicamente o narrador-personagem?

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  3. ahh ja disse O Livro pra Mim ficou top, pois teve aquela Misturinha q eu adoro suspense com vontade de ler as proximas Linhas, Muito envolvente a Historia, uma historia bem detalhada bem descritiva, mas como eu disse tem q ter mais sanguee mais Lutaa.. mais ta bom Léeooo adorei de vdd mesmo bjao Td de Baum

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  4. o que épara VOCê o "pós tudo" da fotografia e poesia do Augusto de campos que vocÊ colocou no começo de todo o livro

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  5. Augusto de Campos é, na minha opinião, um exemplo mágico de poesia concreta. O poema "pós-tudo", contém uma espécie de balanço no estilo mas que expressa vivamente seu conteúdo. A fotografia expressa o conteúdo do parágrafo e, neste caso, do livro. O balanço da poesia funciona como objeto alegórico representativo da história, quase como explicando-a.

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