terça-feira, 6 de julho de 2010

16 de abril de 1905

Neste mundo, o tempo é como um curso de água, ocasionalmente desviado por algum detrito, por uma brisa que passa. De vez em quando, algum distúrbio cósmico fará com que um riacho de tempo se afaste do leito principal para encontrá-lo rio acima. Quando isso acontece, pássaros, terra, pessoas alinhadas no braço que se desviou são repentinamente transportados para o passado.

É fácil identificar pessoas que foram transportadas de volta ao passado. Elas vestem discretas roupas escuras e caminham pé ante pé, tentando não fazer qualquer barulho, tentando não amassar uma folha de grama que seja. Elas temem que qualquer mudança que façam no passado possa ter consequencias drásticas no futuro.

Agora mesmo, por exemplo, uma dessas pessoas está agachada nas sombras da arcada, em frente ao número 19 da Kramgasse. Um lugar estranho para um viajante do futuro, mas lá está ela. Pedestres passam, olham e seguem seu caminho. Ela se encolhe em um canto, depois corre subitamente para o outro lado da rua e se esconde em outro ponto escuro, em frente ao número 22. Ela morre de medo de levantar alguma poeira, no exato momento em que Peter Klausen está passando a caminho do boticário da Spitalgasse nesta tarde de 16 de abril de 1905. Klausen é um tipo meio janota e detesta quando suas roupas não estão impecavelmente limpas.

Se suas roupas forem atingidas pela poeira, ele parará e a espanará zelosamente, mesmo que algum compromisso o esteja aguardando. Se Klausen demorar-se um pouco mais que o necessário, poderá não comprar a pomada para sua esposa, que há semanas reclama de dores nas pernas. Neste caso, a esposa de Klausen poderá ficar de mau humor e decidir não fazer a viagem ao lago de Genebra. E, se ela não for ao lago de Genebra em 23 de junho de 1905, não conhecerá uma certa Catherine d’Épinay enquanto caminha pelo ancoradouro de margem leste e não apresentará d’Épinay ao seu filho Richard. Richard e Catherine, por sua vez, não se casarão em 17 de dezembro de 1908, e seu filho Friedrich não nascerá em 8 de julho de 1912. Friedrich Klausen não se tornará pai de Hans Klausen em 22 de agosto de 1938, e sem Hans Klausen a União Europeia de 1979 nunca ocorrerá.

A mulher do futuro, lançada sem aviso prévio para este tempo e este lugar agora tentando ser invisível no seu cantinho escuro em frente ao número 22 da Kramgasse, conhece a história de Klausen e mil outras histórias esperando ser desencadeadas, dependentes dos nascimentos de crianças, do movimento das pessoas nas ruas, das canções dos pássaros em certos momentos, da posição precisa das cadeiras, do vento. Ela se encolhe na penumbra e não retribui as olhares das pessoas. Ela se esconde e aguarda que a corrente do tempo a leve de volta ao seu próprio tempo.

Quando um viajante do futuro precisa falar, não fala, choraminga. Sussurra sons sofridos. Está angustiado. Pois, se ele provocar a mínima alteração em qualquer coisa, pode destruir o futuro. Ao mesmo tempo, é forçado a testemunhar eventos sem ser parte deles, sem modificá-los. Inveja as pessoas que vivem no seu próprio tempo, que seguem suas próprias vontades, alheias ao futuro, ignorantes dos efeitos das suas ações. Mas ele não pode agir. É um gás inerte, um fantasma, um lençol sem alma. Perdeu sua personalidade. É um exilado do tempo.

Essas descorçoadas pessoas do futuro poder ser vistas em todas as cidades e vilas, escondendo-se sob os beirais dos prédios, nos porões, sob as pontes, em campos desertos. Ninguém lhes pergunta sobre o que acontecerá, sobre futuros casamentos, nascimentos, invenções, finanças, lucros. Em vez disso, elas são abandonadas e sente-se pena delas.

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